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SUCESSOS QUE TRANSGRIDEM OS CÂNONES DOS MANUAIS DE ROTEIRO

Uma das principais regras que um roteirista profissional aprende, na teoria e na prática, é que os arcos dos protagonistas em um filme ou numa série mainstream devem estabelecer uma jornada de aprendizado e transformação para eles. Tal princípio tornou-se evidente com a tese da jornada do herói, proposta em O Herói de Mil Faces, obra canônica de Joseph Campbell, publicada originalmente no final dos anos 1940, e está presente nos consagrados manuais contemporâneos de roteiros, escritos por Syd Field, Robert McKee, Blake Snyder ou Christopher Vogler.

 

De forma geral, exige-se que o protagonista de uma obra ficcional em qualquer gênero apresente uma mudança comportamental evidente entre a sua primeira aparição e a última cena da narrativa.

 

Na perspectiva da jornada do herói, o protagonista percorre necessariamente uma trajetória que envolve três etapas: separação, iniciação e retorno. Ao longo delas, ele passa por um processo de aprendizado, de transformação geralmente positiva, de recompensa e de regresso, quando normalmente contribui na melhoria da comunidade à qual volta. Ainda que esse padrão da jornada do herói tenha inúmeras variações, a ideia de aprendizado e transformação do herói é um princípio inviolável.

 

Tal mandamento aparece também nos principais manuais para roteiristas, usados geralmente como referências para avaliação de roteiros pela indústria do audiovisual. Neles, a recomendação é de que qualquer roteiro ficcional deve obrigatoriamente retratar um processo de aprendizado e transformação ao longo do arco narrativo do protagonista.

 

A produção de filmes e séries televisivas mainstream tem seguido esse princípio à risca. Praticamente todas as produções bem-sucedidas em termos de audiência e receitas apresentam protagonistas que passam por esse processo de aprendizado e transformação.

 

Nas últimas décadas, no entanto, surgiram exceções. São pouquíssimas, mas mostram que é possível romper em algumas situações com esse princípio canônico na criação dos roteiros.

 

Uma delas, e provavelmente a pioneira, é Seinfeld (Jerry Seinfeld e Larry David, NBC, 1989-1998). A sitcom sobre o nada, mas que na verdade é sobre um pouquinho de quase todas as insignificâncias que acontecem no cotidiano urbano, mostra quatro protagonistas que nada aprendem e que não se transformam ao longo de seus arcos narrativos. Tal ausência de mudanças é simbolizada na última cena do último episódio em que dois dos protagonistas repetem o mesmo diálogo que tiveram numa das primeiras cenas do primeiro episódio. Em Seinfeld, os quatro protagonistas mantêm-se imutavelmente egoístas, sarcásticos, cínicos e imorais ao longo das nove temporadas. Larry David, um dos criadores da série, afirma que seu mantra no desenvolvimento dos roteiros é: “no hugging and no learning”, algo como “sem abraços e sem aprendizado”, em tradução livre. E David repete essa mesma fórmula na bem-sucedida sitcom Curb Your Enthusiasm (Larry David, HBO, 2002-atual).

 

No universo das séries dramáticas, a construção de arcos de protagonistas que não aprendem nada e não se transformam aparece em Succession (Jesse Armstrong, HBO, 2018-2023). Um dos maiores sucessos da HBO no período, a série mostra a disputa entre irmãos pela sucessão do patriarca Logan Roy (Brian Cox), fundador e CEO da Waystar Royco, um conglomerado de mídia composto por um canal de notícias, plataforma de streaming, estúdios de cinema, linhas de cruzeiro e parques temáticos.

 

Na série, à semelhança de Seinfeld, os protagonistas não passam por um processo de aprendizado e transformações significativas, mantendo-se comportamentalmente ao final quase iguais a como iniciaram a narrativa. Eles terminam seus arcos narrativos mantendo-se narcisistas, imprudentes e com uma absoluta ausência de crescimento pessoal.

 

Seinfeld, Curb Your Enthusiasm e Succession mostram que, ainda que raramente, é possível criar uma narrativa audiovisual de sucesso rompendo um dos mais importantes princípios no processo de criação de roteiros de filmes e séries. Nelas prevalece o mantra de Larry David: "no hugging and no learning".

(SA)   

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A (IN)FINDÁVEL ERA DOS SUPER-HEROIS NO CINEMA E NA TV

A história do cinema mainstream é feita por ciclos de predominância de determinados gêneros e movimentos. Três deles dominaram as bilheterias nas últimas seis décadas.

 

A era da Nova Hollywood (ou American New Wave) vai da segunda metade dos anos 1960 até o final da década seguinte, com filmes como A Primeira Noite de um Homem (Mike Nichols, 1967), Easy Rider (Dennis Hopper, 1969), O Poderoso Chefão (Francis Ford Coppola, 1972) e Taxi Driver (Martin Scorsese, 1976).  

 

Em contraponto a esses filmes de temáticas realistas, no final dos anos 1970 surge uma nova onda de produções nos gêneros de aventura, ação e ficção científica, que se caracterizam pelos temas juvenis, uso de efeitos especiais inovadores e ostensivas campanhas de marketing. Chamada de Era dos Blockbusters, nela destacaram-se os filmes de diretores como George Lucas, Steven Spielberg e Robert Zemeckis.

 

Em 2000, com o lançamento de X-Men, o Filme (Bryan Singer, 2000), inicia-se um longo ciclo de produções que têm levado para as telas os super-heróis originalmente criados em histórias em quadrinhos (HQs), especialmente aqueles pertencentes aos universos das duas principais editoras de HQs do mundo: a Marvel e a DC Comics. Entre 2000 e 2022, foram lançadas mais de 60 super produções cinematográficas sobre super-heróis, considerando apenas as adaptações da Marvel e da DC. A Era dos Super-Heróis potencializa algumas características da Era dos Blockbusters, com a manutenção dos temas juvenis, o uso massivo de efeitos visuais e campanhas de marketing anda mais milionárias. Desde 2012, em média quatro das dez maiores bilheterias globais anualmente pertencem a filmes de super-heróis. 

 

Havia uma expectativa de que o clico dos super-heróis nas produções audiovisuais estaria chegando ao fim, até porque ele já se constitui num dos ciclos mais longos do cinema mainstream. Pesquisa feita entre 2021 e 2022 nos Estados Unidos mostrou que há alguns sinais de fadiga da audiência com esse tipo de filme, com quedas constantes no percentual de pessoas que o preferem. Apesar disso, cerca de 60% dos adultos entrevistados dizem que ainda gostam de filmes de super-heróis e cerca de 50% de indivíduos da Geração Z afirmaram que também gostam desse tipo de filme e que continuarão a ir aos cinemas para assisti-los. Nessa pesquisa foi possível constatar também que em alguns casos parte da audiência assiste aos filmes das franquias como obrigação, mesmo quando a qualidade não a agrade, pois como se inserem em franquias, os fãs não querem perder a sequência das narrativas. 

 

Outros indícios de um possível fim do ciclo vêm dos resultados declinantes em lançamentos recentes quanto à avaliação por sites especializados, como o Rotten Tomatoes, ou no faturamento de bilheterias. São os casos de Thor: Amor e Trovão (Thai Waititi, 2022) e Pantera Negra: Wakanda para Sempre (Ryan Coogler, 2022), que apresentaram resultados abaixo de seus predecessores.

 

O sinal de que o ciclo dos super-heróis ainda tem sobrevida vem do Marvel Studios. Pertencente ao conglomerado Disney, ele produziu 31 filmes e oito séries televisivas sobre super-heróis. Com eles ganhou cerca de US$ 28 bilhões, apenas nas bilheterias dos cinemas, e dezenas de indicações para o Oscar e o prêmio Emmy. Apesar da percepção de uma certa fadiga da audiência, a linha de produção de blockbusters de super-heróis da Marvel continua sem dar sinais de que vai ser paralisada ou mesmo desacelerada. Há a previsão de filmes de super-heróis pelos próximos dez anos em seu planejamento, incluindo o lançamento de duas novas super produções da franquia “Os Vingadores” em 2025.  (SA)

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RECURSOS NARRATIVOS PARA
CRIAR EMPATIA COM UMA PSICOPATA

Swarm (Prime Video, 2023) insere-se na onda de séries que têm como personagem principal um psicopata, como Você (Netflix, 2018-2023), Dahmer (Netflix, 2022) e Dexter (Showtime, 2006-2013). Um dos principais desafios para o criador desse tipo de narrativa é justamente estabelecer a empatia do espectador com um protagonista-psicopata (leia aqui outro texto sobre este tema).

 

Em Swarm, os showrunners Donald Glover e Janine Nabers recorrem a três recursos narrativos para superar esse desafio e criar algum grau de identificação da audiência com a personagem Andrea “Dree” Greene (Dominique Fishback), uma obcecada fã da cantora Ni’Jah (inspirada em Beyoncé) e que se torna uma serial killer devido a essa compulsão.

 

 

 

 

 

O primeiro é que, assim como no caso do personagem Joe Goldberg da série Você, as ações homicidas de Dree são motivadas por um amor incondicional. No caso de Swarm, Dree mantém uma adoração por Ni’Jah e também pela memória de sua irmã, outra fã da cantora que cometeu suicídio, episódio que

deflagra o instinto assassino de Dree.

 

O segundo recurso é o uso do alívio cômico, aproximando a narrativa da sátira, ao mostrar o bizarro e grotesco comportamento da protagonista, especialmente após cometer alguns dos assassinatos.

O terceiro recurso é o da desorientação do espectador a partir do embaralhamento entre o que é real e o que é ficção na série. Isso é feito a partir do uso de letreiros na abertura dos episódios que anunciam que a série não é uma obra de ficção e que são intencionais as similaridades com pessoas ou eventos reais, do recurso à linguagem dos documentários investigativos e policiais no sexto episódio e da estratégia de divulgação da série que menciona rumores veiculados nas redes sociais relativos aos fãs de Beyoncé como inspiradores de fatos e personagens da narrativa.

 

A combinação desses três recursos, aliados ao convincente desempenho da atriz Dominique Fishback, fazem com que o espectador consiga estabelecer algum grau de empatia com a protagonista. Ainda assim, Swarm tem tido uma performance de audiência que corresponde a apenas um sexto do desempenho de Você. Enquanto a demanda nos Estados Unidos por Você é de cerca de 40 vezes a demanda média das séries, a demanda de Swarm é de 6,5 vezes a demanda média.

(SA)

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QUANDO REPETIR A FÓRMULA DE SUCESSO NÃO DÁ TÃO CERTO

A série That '90s Show (Bonnie Turner, Terry Turner, Lindsey Turner e Gregg Mettler, Netflix) tem tido uma performance modesta em termos de audiência, com uma demanda de 3 vezes a demanda média por séries nos Estados Unidos. A avaliação é pior quando a comparamos com a série original da qual ela é um spin off: That '70s Show (Mark Brazill, Bonnie Turner e Terry Turner, FOX), que teve suas oito temporadas com 223 episódios lançadas entre 1998 e 2006 e que tem atualmente uma demanda de 21 vezes a demanda média nos Estados Unidos (parte dela alavancada pela estreia do spin off). 

 

Um dos problemas de desempenho de That '90S Show pode ser a tentativa de repetir os mesmos perfis de personagens da série original, sem contar, no entanto, com um elenco com o mesmo desempenho do de That '70s Show e sem poder explorar as particularidades comportamentais que caracterizaram a década de 1970.

 

Tendo na sua condução dois dos três criadores da série original, o spin off repete na construção dos novos personagens principais os mesmos perfis dos seus antecessores, acrescentando atualizações de costumes presentes na sociedade dos anos 1990. 

 

Dois dos novos personagens centrais, Leia Forman (Callie Haverda) e Jay Kelso (Mace Coronel), são no spin off uma combinação das personalidades de seus pais, respectivamente as então duplas de namorados na série original Eric Forman (Topher Grace) – Donna Pinciotti (Laura Prepon) e Michael Kelso (Ashton Kutcher) – Jackie Buckhart (Mila Kunis). O fato deles herdarem traços das personalidades do pais é algo que poderia funcionar bem se os personagens tivessem sido desenvolvidos de forma a não se tornarem pastiches dos pais e se seus intérpretes tivessem atuações melhores.

 

Apesar das participações dos personagens e atores de That '70s Show salvarem alguns momentos da versão dos anos 1990, elas acabam também evidenciando as diferenças na qualidade da construção dos personagens e do elenco entre ambas.

 

Os resultados da demanda de audiência indicam também que o spin off produzido pela Netflix, que deveria herdar a audiência da série original, está tendo um desempenho modesto e ainda alavancou o interesse dos espectadores pela série original. A ironia é que That '70s Show pertence à Fox, da concorrente Disney, e atualmente só pode ser assistido via streaming em outras duas concorrentes da Netflix: Peacock e Prime Video (EUA).

(SA)

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O SUCESSO DO PROTAGONISTA
SERIAL KILLER

Ter um serial killer como protagonista em uma série de TV não é novidade desde 2006 com a estreia de Dexter (James Manos Jr, Showtime). A série Você (Greg Berlanti e Sera Gamble, Netflix), no entanto, levou o desafio de fazer a audiência se identificar com um protagonista-psicopata a um novo patamar. Dexter e Você aparecem no seleto grupo de 2,7% de séries com maior demanda de audiência nos Estados Unidos, segundo medição da Parrot Analytics.

 

Em Dexter, apesar do personagem principal ser um assassino em série, o espectador desenvolve empatia pelo protagonista Dexter Morgan (Michael C. Hall) à medida que este exerce seu incontrolável instinto homicida para fazer justiça com as próprias mãos, inserindo-o de certa forma na tradição dos heróis-vigilantes. O protagonista tem todas as peculiaridades de um psicopata, com a diferença de que suas vítimas são assassinos de pessoas inocentes.

 

Em Você, o protagonista Joseph “Joe” Goldberg (Penn Badgley) é um stalker que após conquistar a garota pelo qual está obcecado no momento acaba a matando por algum motivo que sua doentia mente encontra. Neste caso, a conexão entre espectador e personagem é buscada por meio da justificativa de que Joe é levado a assassinar justamente por amar demais a vítima e por ela não ter merecido ou retribuído tanto amor. 

 

Apesar dos diferentes graus de dificuldade que essas séries apresentam para que o espectador tenha empatia com o protagonista-psicopata, ambas recorreram ao mesmo recurso narrativo. Elas apresentam o protagonista como narrador. A opção pela narração em primeira pessoa mostrando o fluxo de consciência do personagem principal coloca o espectador dentro da mente doentia do psicopata, ajudando a compreender seu funcionamento e a “lógica” que move os instintos assassinos dele. Assim, fazer com que o espectador entenda o funcionamento da mente doentia do protagonista-psicopata pode ser um dos componentes do sucesso dessas séries.

(SA)

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DAISY JONES É UM DOS PROBLEMAS EM DAISY JONES & THE SIX

Uma das regras de ouro ao se contar uma estória é que a audiência tenha empatia pelo protagonista. Deve haver uma identificação com o personagem a ponto de ele ser uma espécie de avatar do espectador no mundo diegético.

 

Na minissérie Daisy Jones & the Six (Scott Neustadter e Michael Weber, Prime Video), a estória é contada a partir do ponto de vista de nove personagens diretamente envolvidos no surgimento, ascensão e queda de um fictício grupo de rock nos anos 1970. A trama é uma adaptação da obra homônima da escritora Taylor Jenkins Reid, cujo livro é inspirado na banda Fleetwood Mac e nas complicadas relações amorosas e profissionais de seus integrantes.

 

Apesar dos múltiplos pontos de vista apresentados, o protagonismo na minissérie fica a cargo dos personagens do guitarrista-líder, vocalista e compositor Billy Dune (Sam Caflin) e da compositora e vocalista Daisy Jones (Riley Keough). Gostemos ou não do desempenho do ator Sam Caflin, é possível estabelecer uma identificação com o seu personagem em suas erráticas tentativas de fazer a banda e seu casamento darem certos. Já ter empatia por Daisy Jones é algo bem mais difícil. Sua sensibilidade e genialidade artísticas, que em tese justificariam suas idiossincrasias, são gatilhos para comportamentos sempre destrutivos do personagem, o que cansa as expectativas do espectador de se identificar com ela.

 

A minissérie tem tido um desempenho modesto em termos de audiência e de avaliação. Muitas podem ser as razões para isso, como a fraca performance de parte do elenco e o uso do argumento sexo, drogas e rock’n’roll de forma estereotipada. A falta de empatia com a protagonista Daisy Jones pode ser também uma dessas razões. Neste caso, uma solução seria transformá-la de heroína em vilã. Daisy Jones seria uma excelente antagonista e, nesse caso, não precisaríamos ter empatia alguma por ela.

(SA)

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COMO FAZER DE UM VIDEOGAME UMA SÉRIE DE TV BEM-SUCEDIDA

A série The Last of Us (HBO, 2023-) tem uma demanda de 28 vezes a demanda média das séries nos Estados Unidos, segundo dados da Parrot Analytics, o que a coloca no seleto grupo de produções com desempenho excepcional de audiência. Tal resultado reforça uma tendência de sucessos nas adaptações de videogames para a TV, como comprovam os níveis de demanda por Arcane (Netflix, 2021-), The Witcher (Netflix, 2019-), Pokémon (TXN, 1997-) e Castlevania (Netflix, 2017-), entre outras.

Ao analisar algumas das principais características dessas adaptações de videogames para séries televisivas, a Parrot Analytics identificou quatro regras que devem ser seguidas por criadores de séries baseadas em games para que sejam bem-sucedidas: (1) ultrapassar a narrativa típica apresentada no jogo, expandindo o universo da estória; (2) explorar os mecanismos utilizados no jogo que podem ser transformados em cenas e cenários impressionantes; (3) respeitar a ideia original, mas subverter os gêneros narrativos utilizados; e (4) deixar espaço para expansões e adaptações adicionais que usem novas tecnologias.

O estudo Gaming Adaptation: the recipe to success mostra também que as adaptações feitas para as séries de TV tem se saído melhor no interesse do público do que as adaptações de videogames para o cinema.

(SA)

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